Amigo leitor,
Num mundo de tanta escuridão, sofrimento físico, moral e espiritual, e grande desorientação, urge acolhermos o magistério extraordinário do Papa S. João Paulo II, a grande Luz que Deus deu à Igreja.
Leia com muita atenção 21 números da seguinte Carta Encíclica, e se puder lei-a na totalidade. Este documento contém uma clareza de doutrina excepcional sobre o que é evangelizar e qual a missão de Jesus e da Igreja.
Num mundo de tanta escuridão, sofrimento físico, moral e espiritual, e grande desorientação, urge acolhermos o magistério extraordinário do Papa S. João Paulo II, a grande Luz que Deus deu à Igreja.
Leia com muita atenção 21 números da seguinte Carta Encíclica, e se puder lei-a na totalidade. Este documento contém uma clareza de doutrina excepcional sobre o que é evangelizar e qual a missão de Jesus e da Igreja.
CARTA ENCÍCLICA REDEMPTORIS MISSIO DO SUMO PONTÍFICE JOÃO PAULO II SOBRE A VALIDADE PERMANENTE DO MANDATO MISSIONÁRIO
Veneráveis Irmãos e caríssimos Filhos saudações e Bênção Apostólica!
INTRODUÇÃO
1. A MISSÃO DE CRISTO REDENTOR, confiada à Igreja, está ainda bem longe do seu pleno cumprimento. No termo do segundo milénio, após a Sua vinda, uma visão de conjunto da humanidade mostra que tal missão está ainda no começo, e que devemos empenhar-nos com todas as forças no seu serviço. É o Espírito que impele a anunciar as grandes obras de Deus! « Porque se anuncio o Evangelho, não tenho de que me gloriar, pois que me foi imposta esta obrigação: ai de mim se não evangelizar! » (1 Cor 9, 16).
Em nome de toda a Igreja, sinto o dever imperioso de repetir este grito de S. Paulo. Desde o início do meu pontificado, decidi caminhar até aos confins da terra para manifestar esta solicitude missionária, e este contacto directo com os povos, que ignoram Cristo, convenceu-me ainda mais da urgência de tal actividade a que dedico a presente Encíclica.
O Concílio Vaticano II pretendeu renovar a vida e a actividade da Igreja, de acordo com as necessidades do mundo contemporâneo: assim sublinhou o seu carácter missionário, fundamentando-o dinamicamente na própria missão trinitária. O impulso missionário pertence, pois, à natureza íntima da vida cristã, e inspira também o ecumenismo: « que todos sejam um (...) para que o mundo creia que Tu Me enviaste» (Jo 17,21).
2. Já são muitos os frutos missionários do Concílio: multiplicaram-se as Igrejas locais, dotadas do seu bispo, clero e agentes apostólicos próprios; verifica-se uma inserção mais profunda das Comunidades cristãs na vida dos povos; a comunhão entre as Igrejas contribui para um vivo intercambio de bens e dons espirituais; o empenhamento dos leigos no serviço da evangelização está a mudar a vida eclesial; as Igrejas particulares abrem-se ao encontro, ao diálogo e à colaboração com os membros de outras Igrejas cristãs e outras religiões. Sobretudo está-se a afirmar uma nova consciência, isto é, a de que a missão compete a todos os cristãos, a todas as dioceses e paróquias, instituições e associações eclesiais.
No entanto, nesta « nova primavera » do cristianismo não podemos ocultar uma tendência negativa, que, aliás, este Documento quer ajudar a superar: a missão específica ad gentes parece estar numa fase de afrouxamento, contra todas as indicações do Concílio e do Magistério posterior. Dificuldades internas e externas enfraqueceram o dinamismo missionário da Igreja ao serviço dos não-cristãos: isto é um facto que deve preocupar todos os que crêem em Cristo. Na História da Igreja, com efeito, o impulso missionário sempre foi um sinal de vitalidade, tal como a sua diminuição constitui um sinal de crise de fé.[1]
A distancia de vinte e cinco anos da conclusão do Concílio e da publicação do Decreto sobre a actividade missionária Ad gentes, a quinze anos da Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi de Paulo VI, de veneranda memória, desejo convidar a Igreja a umrenovado empenhamento missionário, dando, neste assunto, continuação ao Magistério dos meus predecessores. [2] O presente Documento tem uma finalidade interna: a renovação da fé e da vida cristã. De facto, a missão renova a Igreja, revigora a sua fé e identidade, dá-lhe novo entusiasmo e novas motivações. É dando a fé que ela se fortalece! A nova evangelização dos povos cristãos também encontrará inspiração e apoio, no empenho pela missão universal.
Mas o que me anima mais a proclamar a urgência da evangelização missionária é que ela constitui o primeiro serviço que a Igreja pode prestar ao homem e à humanidade inteira, no mundo de hoje, que, apesar de conhecer realizações maravilhosas, parece ter perdido o sentido último das coisas e da sua própria existência. « Cristo Redentor — como deixei escrito na primeira Encíclica — revela plenamente o homem a si próprio. O homem que a si mesmo se quiser compreender profundamente (.. ) deve aproximar-se de Cristo (...) A Redenção, operada na cruz, restituiu definitivamente ao homem a dignidade e o sentido da sua existência no mundo ». [3]
Não faltam certamente outros motivos e finalidades: corresponder a inúmeros pedidos de um documento deste género; dissipar dúvidas e ambiguidades sobre a missão ad gentes, confirmando no seu compromisso os beneméritos homens e mulheres que se dedicam à actividade missionária e todos quantos os ajudam; promover as vocações missionárias; estimular os teólogos a aprofundar e expor sistematicamente os vários aspectos da missão; relançar a missão, em sentido específico, comprometendo as Igrejas particulares, especialmente as de recente formação, a mandarem e a receberem missionários; garantir aos não cristãos, e particularmente às Autoridades dos Países aos quais se dirige a actividade missionária, que esta só tem uma finalidade, ou seja, servir o homem, revelando-lhe o amor de Deus manifestado em Cristo Jesus.
3. Povos todos, abri as portas a Cristo! O Seu Evangelho não tira nada à liberdade do homem, ao devido respeito pelas culturas, a tudo quanto de bom possui cada religião. Acolhendo Cristo, abris-vos à Palavra definitiva de Deus, Àquele no qual Deus se deu a conhecer plenamente e nos indicou o caminho para chegar a Ele.
O número daqueles que ignoram Cristo, e não fazem parte da Igreja está em contínuo aumento; mais ainda: quase duplicou, desde o final do Concílio. A favor desta imensa humanidade, amada pelo Pai a ponto de lhe enviar o Seu Filho, é evidente a urgência da missão.
Por outro lado, a época que vivemos oferece, neste campo, novas oportunidades à Igreja: a queda de ideologias e sistemas políticos opressivos; o aparecimento de um mundo mais unido, graças ao incremento das comunicações; a afirmação, cada vez mais frequente entre os povos, daqueles valores evangélicos que Jesus encarnou na sua vida: paz, justiça, fraternidade, dedicação aos mais pequenos; um tipo de desenvolvimento económico e técnico sem alma, que, em contrapartida, está a criar necessidade da verdade sobre Deus , o homem e o significa do da vida.
Deus abre, à Igreja, os horizontes de uma humanidade mais preparada para a sementeira evangélica. Sinto chegado o momento de empenhar todas as forças eclesiais na nova evangelização e na missão ad gentes. Nenhum crente, nenhuma instituição da Igreja se pode esquivar deste dever supremo: anunciar Cristo a todos os povos.
CAPÍTULO I
JESUS CRISTO ÚNICO SALVADOR
4. « A tarefa fundamental da Igreja de todos os tempos e, particularmente, do nosso — como lembrei, na minha primeira Encíclica programática — é a de dirigir o olhar do homem e orientar a consciência e experiência da humanidade inteira, para o mistério de Cristo ». [4]
A missão universal da Igreja nasce da fé em Jesus Cristo, como se declara no Credo: « Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigénito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos (...) E por nós homens, e para nossa salvação, desceu dos céus. E encarnou pelo Espírito Santo no seio da Virgem Maria, e Se fez homem ». [5] No acontecimento da Redenção está a salvação de todos, « porque todos e cada um foram compreendidos no mistério da Redenção, e a todos e cada um se uniu Cristo para sempre, através deste mistério »: [6] somente na fé, se fundamenta e compreende a missão.
No entanto, devido às mudanças dos tempos modernos e à difusão de novas ideias teológicas, alguns interrogam-se: ainda é actual a missão entre os não cristãos? Não estará por acaso substituída pelo diálogo interreligioso? Não se deverá restringir ao empenho pela promoção humana? O respeito pela consciência e pela liberdade não exclui qualquer proposta de conversão? Não é possível salvar-se em qualquer religião? Para quê, pois, a missão?
« Ninguém vai ao Pai, senão por Mim » (Jo 14, 6)
5. Remontando às origens da Igreja, aparece clara a afirmação de que Cristo é o único salvador de todos, o único capaz de revelar e de conduzir a Deus. As autoridades religiosas judaicas, que interrogam os Apóstolos sobre a cura do aleijado, realizada por Pedro, este responde: « É em nome de Jesus Nazareno, que vós crucificastes e Deus ressuscitou dos mortos, é por Ele que este homem se apresenta curado diante de vós (... ) E não há salvação em nenhum outro, pois não há debaixo do céu qualquer outro nome dado aos homens que nos possa salvar » (Act 4, 10.12). Esta afirmação, dirigida ao Sinédrio, tem um valor universal, já que, para todos — judeus e gentios —, a salvação só pode vir de Jesus Cristo.
A universalidade desta salvação em Cristo é afirmada em todo o Novo Testamento. S. Paulo reconhece, em Cristo ressuscitado, o Senhor: « Porque, ainda que haja alguns que são chamados deuses, quer no céu quer na terra, existindo assim muitos deuses e muitos senhores, para nós há apenas um único Deus, o Pai de Quem tudo procede e para Quem nós existimos; e um único Senhor, Jesus Cristo, por meio do Qual todas as coisas existem, e igualmente nós existimos também » (1 Cor 8, 5-6). O único Deus e o único Senhor são afirmados em contraste com a multidão de « deuses » e de « senhores » que o povo admitia. Paulo reage contra o politeísmo do ambiente religioso do seu tempo, pondo em relevo a característica da fé cristã: crença num só Deus e num só Senhor, por Aquele enviado.
No Evangelho de S. João, esta universalidade salvífica de Cristo compreende os aspectos da Sua missão de graça, de verdade e de revelação: « o Verbo é a Luz verdadeira que a todo o homem ilumina » (Jo 1, 9). E ainda: « ninguém jamais viu Deus: o Filho único, que está no seio do Pai, é que O deu a conhecer » (Jo 1, 18; cf. Mt 11, 27). A revelação de Deus tornou-se definitiva e completa, na obra do Seu Filho Unigénito: « Tendo Deus falado outrora aos nossos pais, muitas vezes e de muitas maneiras, pelos profetas, agora falou-nos, nestes últimos tempos, pelo Filho, a Quem constituiu herdeiro de tudo, e por Quem igualmente criou o mundo » (Heb 1, 1-2; cf. Jo 14, 6). Nesta Palavra definitiva da Sua revelação, Deus deu-se a conhecer do modo mais pleno: Ele disse à humanidade Quem é. E esta auto-revelação definitiva de Deus é o motivo fundamental pelo qual a Igreja é, por sua natureza, missionária. Não pode deixar de proclamar o Evangelho, ou seja, a plenitude da verdade que Deus nos deu a conhecer de Si mesmo.
Cristo é o único mediador entre Deus e os homens: « há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo Homem, que se deu em resgate por todos. Tal é o testemunho que foi dado no tempo devido, e do qual eu fui constituído pregador, apóstolo e mestre dos gentios na fé e na verdade. Digo a verdade, não minto » (1 Tim 2, 5-7; cf. Heb 4, 14-16). Os homens, portanto, só poderão entrar em comunhão com Deus através de Cristo, e sob a acção do Espírito. Esta Sua mediação única e universal, longe de ser obstáculo no caminho para Deus, é a via estabelecida pelo próprio Deus, e disso, Cristo tem plena consciência. Se não se excluem mediações participadas de diverso tipo e ordem, todavia elas recebem significado e valorunicamente da de Cristo, e não podem ser entendidas como paralelas ou complementares desta.
6. É contrário à fé cristã introduzir qualquer separação entre o Verbo divino e Jesus Cristo. S. João afirma claramente que o Verbo, que « no princípio estava com Deus », é o mesmo que « se fez carne » (Jo 1, 2. 14). Jesus é o Verbo encarnado, pessoa una e indivisa: não se pode separar Jesus, de Cristo, nem falar de um «Jesus da história » que seria diferente do « Cristo da fé ». A Igreja conhece e confessa Jesus como « Cristo, o Filho de Deus vivo » (Mt 16, 16): Cristo não é diferente de Jesus de Nazaré; e este é o Verbo de Deus feito homem, para a salvação de todos. Em Cristo, « habita corporalmente toda a plenitude da divindade » (Col 2, 9) e « da Sua plenitude todos nós recebemos » (Jo 1, 16). O « Filho Unigénito, que está no seio do Pai » (Jo 1, 18), é « o Filho muito amado, no qual temos a redenção e a remissão dos pecados (...) Aprouve a Deus que n'Ele residisse toda a plenitude, e por Ele fossem reconciliadas Consigo todas as coisas, pacificando, pelo sangue da sua cruz, tanto as criaturas da terra como as do céu » (Col 1, 13-14. 19-20). Precisamente esta singularidade única de Cristo é que Lhe confere um significado absoluto e universal, pelo qual, enquanto está na História, é o centro e o fim desta mesma História: [7] « Eu sou o Alfa e o Ómega, o Primeiro e o Ultimo, o Princípio e o Fim » (Ap 22, 13).
Se é lícito e útil, portanto, considerar o mistério de Cristo sob os seus vários aspectos, nunca se deve perder de vista a Sua unidade. À medida que formos descobrindo e valorizando os diversos tipos de dons, e sobretudo as riquezas espirituais, que Deus distribuiu a cada povo, não podemos separá-los de Jesus Cristo, o Qual está no centro da economia salvadora. De facto, como « pela encarnação, o Filho de Deus se uniu de alguma forma a todo o homem », assim « devemos acreditar que o Espírito Santo oferece a todos, de um modo que só Deus conhece, a possibilidade de serem associados ao mistério pascal », [8] o plano divino é « recapitular em Cristo todas as coisas que há no céu e na terra » (Ef 1, 10).
A fé em Cristo é uma proposta à liberdade do homem
7. A urgência da actividade missionária deriva da radical novidade de vida, trazida por Cristo e vivida pelos Seus discípulos. Esta nova vida é dom de Deus, e, ao homem, é-lhe pedido que a acolha e desenvolva, se quiser realizar integralmente a sua vocação, conformando-se a Cristo. Todo o Novo Testamento se apresenta como um hino à vida nova, para aquele que crê em Cristo e vive na Sua Igreja. A salvação em Cristo, testemunhada e anunciada pela Igreja, é auto-comunicação de Deus. « O amor não só cria o bem, mas faz participar também na própria vida de Deus: Pai, Filho e Espírito Santo. Com efeito, aquele que ama quer dar-se a si mesmo ». [9]
Deus oferece ao homem esta novidade de vida. « Poder-se-á rejeitar Cristo e tudo aquilo que Ele introduziu na história do homem? Certamente que sim; o homem é livre: ele pode dizer não, a Deus. O homem pode dizer não, a Cristo. Mas permanece a pergunta fundamental: é lícito fazê-lo? É lícito, em nome de quê? ». [10]
8. No mundo moderno, há tendência para reduzir o homem unicamente à dimensão horizontal. Mas o que acontece ao homem que não se abre ao Absoluto? A resposta está na experiência de cada homem, mas está também inscrita, na história da humanidade, com o sangue derramado em nome de ideologias e regimes políticos que quiseram construir uma « humanidade nova » sem Deus. [11]
De resto, a quantos se mostram preocupados em salvar a liberdade de consciência, o Concílio Vaticano II responde: « a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa (...) Todos os homens devem viver imunes de coacção, em matéria religiosa, quer da parte de pessoas particulares, quer de grupos sociais ou qualquer poder humano, de tal forma que ninguém seja obrigado a agir contra a sua consciência, nem impedido de actuar de acordo com ela, privada ou publicamente, só ou associado ». [12]
O anúncio e o testemunho de Cristo, quando feitos no respeito das consciências, não violam a liberdade. A fé exige a livre adesão do homem, mas tem de ser proposta, já que « as multidões têm o direito de conhecer as riquezas do mistério de Cristo, nas quais toda a humanidade — assim o acreditamos nós — pode encontrar, numa plenitude inimaginável, tudo aquilo que procura, às apalpadelas, a respeito de Deus, do homem, do seu destino, da vida e da morte, da verdade (... ) É por isso que a Igreja conserva bem vivo o seu espírito missionário, desejando até que ele se intensifique, neste momento histórico que nos foi dado viver ». [13] No entanto, é necessário acrescentar, citando ainda o Concílio, que « todos os homens, pela sua própria dignidade, já que são pessoas, isto é, seres dotados de razão e vontade livre, e consequentemente de responsabilidade pessoal, são impelidos pela sua natureza, e moralmente obrigados a procurar a verdade, e antes de tudo a que se refere à religião. Têm também obrigação de aderir à verdade conhecida, e ordenar toda a sua vida segundo as exigências da verdade ». [14]
A Igreja sinal e instrumento de salvação
9. A primeira beneficiária da salvação é a Igreja: Cristo adquiriu-a com o Seu sangue (cf. Act 20, 28) e tornou-a Sua cooperadora na obra da salvação universal. Com efeito, Cristo vive nela, é o seu Esposo, realiza o seu crescimento, e cumpre a Sua missão através dela.
O Concílio deu grande realce ao papel da Igreja, em favor da salvação da humanidade. Enquanto reconhece que Deus ama todos os homens e lhes dá a possibilidade de se salvarem (cf. 1 Tim 2, 4), [15] a Igreja professa que Deus constituiu Cristo como único mediador e que ela própria foi posta como instrumento universal de salvação. [16] « Todos os homens, pois, são chamados a esta católica unidade do Povo de Deus (...) à qual, de diversos modos, pertencem ou estão ordenados quer os fiéis católicos, quer os outros crentes em Cristo, quer universalmente todos os homens, chamados à salvação pela graça de Deus ». [17] É necessário manter unidas, estas duas verdades: a real possibilidade de salvação em Cristo para todos os homens, e a necessidade da Igreja para essa salvação. Ambas facilitam a compreensão do único mistério salvífico, permitindo experimentar a misericórdia de Deus e a nossa responsabilidade. A salvação, que é sempre um dom do Espírito, exige a colaboração do homem, para se salvar tanto a si próprio como aos outros. Assim o quis Deus, e por isso estabeleceu e comprometeu a Igreja no plano da salvação. « Este povo messiânico — diz o Concílio — estabelecido por Cristo como uma comunhão de vida, amor e verdade, serve também, nas mãos d'Ele, de instrumento da redenção universal, sendo enviado a todo o mundo, como luz desse mundo e sal da terra ». [18]
A salvação é oferecida a todos os homens
10. A universalidade da salvação em Cristo não significa que ela se destina apenas àqueles que, de maneira explícita, crêem em Cristo e entraram na Igreja. Se é destinada a todos, a salvação deve ser posta concretamente à disposição de todos. É evidente, porém, que, hoje como no passado, muitos homens não têm a possibilidade de conhecer ou aceitar a revelação do Evangelho, e de entrar na Igreja. Vivem em condições socioculturais que o não permitem, e frequentemente foram educados noutras tradições religiosas. Para eles, a salvação de Cristo torna-se acessível em virtude de uma graça que, embora dotada de uma misteriosa relação com a Igreja, todavia não os introduz formalmente nela, mas ilumina convenientemente a sua situação interior e ambiental. Esta graça provém de Cristo, é fruto do Seu sacrifício e é comunicada pelo Espírito Santo: ela permite a cada um alcançar a salvação, com a sua livre colaboração.
Por isso o Concílio, após afirmar a dimensão central do Mistério Pascal, diz: « isto não vale apenas para aqueles que crêem em Cristo, mas para todos os homens de boa vontade, no coração dos quais opera invisivelmente a graça. Na verdade, se Cristo morreu por todos e a vocação última do homem é realmente uma só, isto é, a divina, nós devemos acreditar que o Espírito Santo oferece a todos, de um modo que só Deus conhece, a possibilidade de serem associados ao Mistério Pascal ». [19]
« Não podemos calar-nos » (Act 4, 20)
11. Que dizer então das objecções, atrás referidas, relativamente à missão ad gentes? Respeitando todas as crenças e todas as sensibilidades, devemos afirmar antes de mais, com simplicidade, a nossa fé em Cristo, único Salvador do homem — fé que recebemos como um dom do Alto, sem mérito algum da nossa parte. Dizemos com S. Paulo: « eu não me envergonho do Evangelho, o qual é poder de Deus para salvação de todo o crente » (Rm 1, 16). Os mártires cristãos de todos os tempos — também do nosso — deram e continuam a dar a vida para testemunhar aos homens esta fé, convencidos de que cada homem necessita de Jesus Cristo, o Qual, destruindo o pecado e a morte, reconciliou os homens com Deus.
Cristo proclamou-se Filho de Deus, intimamente unido ao Pai e, como tal, foi reconhecido pelos discípulos, confirmando as suas palavras com milagres e sobretudo com a ressurreição. A Igreja oferece aos homens o Evangelho, documento profético, capaz de corresponder às exigências e aspirações do coração humano: é e será sempre a « Boa Nova ». A Igreja não pode deixar de proclamar que Jesus veio revelar a face de Deus, e merecer, pela cruz e ressurreição, a salvação para todos os homens.
À pergunta porquê a missão?, respondemos, com a fé e a experiência da Igreja, que abrir-se ao amor de Cristo é a verdadeira libertação. N'Ele, e só n'Ele, somos libertos de toda a alienação e extravio, da escravidão ao poder do pecado e da morte. Cristo é verdadeiramente « a nossa paz » (Ef 2,14), e « o amor de Cristo nos impele » (2 Cor 5, 14), dando sentido e alegria à nossa vida.A missão é um problema de fé, é a medida exacta da nossa fé em Cristo e no Seu amor por nós.
A tentação hoje é reduzir o cristianismo a uma sabedoria meramente humana, como se fosse a ciência do bom viver. Num mundo fortemente secularizado, surgiu uma « gradual secularização da salvação », onde se procura lutar, sem dúvida, pelo homem, mas por um homem dividido a meio, reduzido unicamente à dimensão horizontal. Ora nós sabemos que Jesus veio trazer a salvação integral, que abrange o homem todo e todos os homens, abrindo-lhes os horizontes admiráveis da filiação divina.
Porquê a missão? Porque a nós, como a S. Paulo, « nos foi dada esta graça de anunciar aos gentios a insondável riqueza de Cristo » (Ef 3, 8). A novidade de vida n'Ele é « Boa Nova » para o homem de todos os tempos: a ela todos são chamados e destinados. Todos, de facto, a buscam, mesmo se às vezes confusamente, e têm o direito de conhecer o valor de tal dom e aproximar-se dele. A Igreja, e nela cada cristão, não pode esconder nem guardar para si esta novidade e riqueza, recebida da bondade divina para ser comunicada a todos os homens.
Eis por que a missão, para além do mandato formal do Senhor, deriva ainda da profunda exigência da vida de Deus em nós. Aqueles que estão incorporados na Igreja Católica devem-se sentir privilegiados, e, por isso mesmo, mais comprometidos atestemunhar a fé e a vida cristã como serviço aos irmãos e resposta devida a Deus, lembrados de que « a grandeza da sua condição não se deve atribuir aos próprios méritos, mas a uma graça especial de Cristo; se não correspondem a essa graça por pensamentos, palavras e obras, em vez de se salvarem, incorrem num julgamento ainda mais severo ». [20]
CAPÍTULO II
O REINO DE DEUS
12. « Deus, rico em misericórdia, é Aquele que Jesus Cristo nos revelou como Pai. Foi o Seu próprio Filho Quem, em Si mesmo, no-l'O manifestou e deu a conhecer », [21] Isto escrevi-o eu, no início da Encíclica Dives in misericordia, mostrando como Cristo é a revelação e a encarnação da misericórdia do Pai. A salvação consiste em crer e acolher o mistério do Pai e do Seu amor, que se manifesta e oferece em Jesus, por meio do Espírito. Assim se cumpre o Reino de Deus, preparado já no Antigo Testamento, realizado por Cristo e em Cristo, anunciado a todos os povos pela Igreja, que actua e reza para que ele se realize de modo perfeito e definitivo.
Na verdade, o Antigo Testamento atesta que Deus escolheu para Si e formou um povo, para revelar e cumprir o Seu plano de amor. Mas, ao mesmo tempo, Deus é criador e Pai de todos os homens, atende às necessidades de cada um, estende a Sua bênção a todos (cf. Gn 12, 3) e com todos selou uma aliança (cf. Gn 9, 1-17). Israel faz a experiência de um Deus pessoal e salvador (cf. Dt 4, 37; 7, 6-8; Is 43, 1-7), do Qual se torna testemunha e porta-voz, no meio das nações. Ao longo da sua história, Israel toma consciência de que a sua eleição tem um significado universal (cf por ex.: Is 2, 2-5; 25, 6-8; 60, 1-6; Jer 3, 17; 16, 19).
Cristo torna presente o Reino
13. Jesus de Nazaré levou o plano de Deus ao seu pleno cumprimento. Depois de ter recebido o Espírito Santo no baptismo, Ele manifesta a sua vocação messiânica nestes moldes: percorre a Galileia, « pregando a Boa Nova de Deus: 'Completou-se o tempo, o Reino de Deus está perto! Arrependei-vos, e acreditai na Boa Nova' » (Mc 1, 14-15; cf. Mt 4, 17; Lc 4, 43). A proclamação e a instauração do Reino de Deus são o objectivo da Sua missão: « pois foi para isso que fui enviado » (Lc 4, 43). Mais ainda: o próprio Jesus é a « Boa Nova », como afirma logo no início da missão, na sinagoga da Sua terra natal, aplicando a Si próprio as palavras de Isaías, sobre o Ungido, enviado pelo Espírito do Senhor (cf. Lc 4, 14-21). Sendo Ele a « Boa Nova », então em Cristo há identidade entre mensagem e mensageiro, entre o dizer, o fazer e o ser. A força e o segredo da eficácia da Sua acção está na total identificação com a mensagem que anuncia: proclama a « Boa Nova » não só por aquilo que diz ou faz, mas também pelo que é.
O ministério de Jesus é descrito no contexto das viagens na Sua terra. O horizonte da missão antes da Páscoa concentra-se em Israel; no entanto, Jesus oferece um novo elemento de importância capital. A realidade escatológica não fica adiada para um remoto fim do mundo, mas está próxima e começa já a cumprir-se. O Reino de Deus aproxima-se (cf. Mc 1, 15), roga-se que venha (Mt 6, 10), a fé já o descobre operante nos sinais, isto é, nos milagres (cf. Mt 11, 4-5), nos exorcismos (cf. Mt 12, 25-28), na escolha dos Doze (cf. Mc 3, 13-19), no anúncio de Boa Nova aos pobres (cf. Lc 4, 18). Nos encontros de Jesus com os pagãos, fica claro que o acesso ao Reino se faz pela fé e conversão (cf. Mc 1, 15), e não por mera proveniência étnica.
O Reino, inaugurado por Jesus, é o Reino de Deus: o próprio Jesus revela Quem é este Deus, para o Qual usa a expressão familiar « Abba », Pai (Mc 14, 36). Deus, revelado especialmente nas parábolas (cf. Lc 15, 3-32; Mt 20, 1-16), é sensível às necessidades e aos sofrimentos do homem: um Pai cheio de amor e compaixão, que perdoa e dá gratuitamente os benefícios que Lhe pedem.
S. João diz-nos que « Deus é amor » (1 Jo 4, 8.16). Todo o homem, por isso, é convidado a « converter-se » e a « crer » no amor misericordioso de Deus por ele: o Reino crescerá na medida em que cada homem aprender a dirigir-se a Deus, na intimidade da oração, como a um Pai (cf. Lc 11, 2; Mt 23, 9), e se esforçar por cumprir a Sua vontade (cf. Mt 7, 21).
Características e exigências do Reino
14. Jesus revela progressivamente as características e as exigências do Reino, através das suas palavras, das suas obras e da sua pessoa.
O Reino de Deus destina-se a todos os homens, pois todos foram chamados a pertencer-lhe. Para sublinhar este aspecto, Jesus aproximou-se sobretudo daqueles que eram marginalizados pela sociedade, dando-lhes preferência, ao anunciar a Boa Nova. No início do Seu ministério, proclama: fui enviado a anunciar a Boa Nova aos pobres (cf. Lc 4, 18). As vítimas da rejeição e do desprezo, declara: « bem-aventurados vós, os pobres » (Lc 6, 20), fazendo-lhes, inclusive, sentir e viver já uma experiência de libertação, estando com eles, partilhando a mesma mesa (cf. Lc 5, 30; 15, 2), tratando-os como iguais e amigos (cf. Lc 7, 34), procurando que se sentissem amados por Deus, e revelando deste modo imensa ternura pelos necessitados e pecadores (cf. Lc15, 1-32).
A libertação e a salvação, oferecidas pelo Reino de Deus, atingem a pessoa humana tanto nas suas dimensões físicas como espirituais. Dois gestos caracterizam a missão de Jesus: curar e perdoar. As múltiplas curas provam a Sua grande compaixão face às misérias humanas; mas significam também que, no Reino de Deus, não haverá doenças nem sofrimentos, e que a Sua missão, desde o início, visa libertar as pessoas daqueles. Na perspectiva de Jesus, as curas são também sinal da salvação espiritual, isto é, da libertação do pecado Realizando gestos de cura, Jesus convida à fé, à conversão, ao desejo do perdão (cf. Lc 5, 24) Recebida a fé, a cura impele a ir mais longe: introduz na salvação (cf. Lc 18, 42-43). Os gestos de libertação da possessão do demónio, mal supremo e símbolo do pecado e da rebelião contra Deus, são sinais de que o « Reino de Deus chegou até vós » (Mt 12, 28).
15. O reino pretende transformar as relações entre os homens, e realiza-se progressivamente à medida que estes aprendem a amar, perdoar, a servir-se mutuamente. Jesus retoma toda a Lei, centrando-a no mandamento do amor (cf. Mt 22, 34-40; Lc 10, 25-28). Antes de deixar os seus, dá-lhes um « mandamento novo »: « amai-vos uns aos outros como Eu vos amei » (Jo 13, 34; cf. 15, 12). O amor com que Jesus amou o mundo tem a sua expressão suprema, no dom da Sua vida pelos homens (cf. Jo 15, 13), que manifesta o amor que o Pai tem pelo mundo (cf. Jo 3, 16). Por isso a natureza do Reino é a comunhão de todos os seres humanos entre si e com Deus.
O Reino diz respeito a todos: às pessoas, à sociedade, ao mundo inteiro. Trabalhar pelo Reino significa reconhecer e favorecer o dinamismo divino, que está presente na história humana e a transforma. Construir o Reino quer dizer trabalhar para a libertação do mal, sob todas as suas formas. Em resumo, o Reino de Deus é a manifestação e a actuação do Seu desígnio de salvação, em toda a sua plenitude.
Em Cristo ressuscitado, o Reino cumpre-se e é proclamado
16. Ao ressuscitar Jesus dos mortos, Deus venceu a morte, e n'Ele inaugurou definitivamente o Seu Reino. Durante a vida terrena, Jesus é o profeta do Reino e, depois da Sua paixão, ressurreição e ascensão aos céus, participa do poder de Deus, e do Seu domínio sobre o mundo (cf Mt 28, 18; Act 2, 36; Ef 1, 18-21). A ressurreição confere à mensagem de Cristo, e a toda a Sua acção e missão, um alcance universal. Os discípulos constatam que o Reino já está presente na pessoa de Jesus, e pouco a pouco vai-se instaurando no homem e no mundo, por uma misteriosa ligação com a Sua pessoa. Assim depois da ressurreição, eles pregam o Reino, anunciando a morte e a ressurreição de Jesus; Filipe, na Samaria, « anunciava a Boa Nova do Reino de Deus e do nome de Jesus Cristo » (Act 8, 12). Paulo, em Roma, « anunciava o Reino de Deus e ensinava o que diz respeito ao Senhor Jesus Cristo » (Act 28, 31). Também os primeiros cristãos anunciam « o Reino de Cristo e de Deus » (Ef 5, 5; cf. Ap 11, 15; 12, 10), ou então « o Reino eterno de Nosso Senhor e Salvador, Jesus Cristo » (2 Ped 1, 11). Sobre o anúncio de Jesus Cristo, com o Qual o Reino se identifica, se concentra a pregação da Igreja primitiva. Como outrora, é preciso unir hoje o anúncio do Reino de Deus (o conteúdo do « kerigma » de Jesus) e a proclamação da vinda de Jesus Cristo (o « kerigma » dos apóstolos). Os dois anúncios completam-se e iluminam-se mutuamente.
O Reino em relação a Cristo e à Igreja
17. Hoje fala-se muito do Reino, mas nem sempre em consonância com o sentir da Igreja. De facto, existem concepções de salvação e missão que podem ser designadas « antropocêntricas », no sentido redutivo da palavra, por se concentrarem nas necessidades terrenas do homem. Nesta perspectiva, o Reino passa a ser uma realidade totalmente humanizada e secularizada, onde o que conta são os programas e as lutas para a libertação socio-económica, política e cultural, mas sempre num horizonte fechado ao transcendente. Sem negar que, a este nível, também existem valores a promover, todavia estas concepções permanecem nos limites de um reino do homem, truncado nas suas mais autênticas e profundas dimensões, espelhando-se facilmente numa das ideologias de progresso puramente terreno. O Reino de Deus, pelo contrário, « não é deste mundo (...) não é daqui debaixo » (Jo 18, 36).
Existem também concepções que propositadamente colocam o acento no Reino, autodenominando-se de « reino-cêntricas », pretendendo com isso fazer ressaltar a imagem de uma Igreja que não pensa em si, mas dedica-se totalmente a testemunhar e servir o Reino. E uma « Igreja para os outros » — dizem — como Cristo é o homem para os outros. A tarefa da Igreja é orientada num duplo sentido: por um lado promover os denominados « valores do Reino », como a paz, a justiça, a liberdade, a fraternidade, por outro, favorecer o diálogo entre os povos, as culturas, as religiões, para que, num mútuo enriquecimento, ajudem o mundo a renovar-se e a caminhar cada vez mais na direcção do Reino.
Ao lado de aspectos positivos, essas concepções revelam frequentemente outros negativos. Antes de mais, silenciam o que se refere a Cristo: o Reino, de que falam, baseia-se num « teocentrismo », porque — como dizem — Cristo não pode ser entendido por quem não possui a fé n'Ele, enquanto que povos, culturas e religiões se podem encontrar na mesma e única realidade divina, qualquer que seja o seu nome. Pela mesma razão, realçam o mistério da criação, que se reflecte na variedade de culturas e crenças, mas omitem o mistério da redenção. Mais ainda, o Reino, tal como o entendem eles, acaba por marginalizar ou desvalorizar a Igreja, como reacção a um suposto eclesiocentrismo do passado, por considerarem a Igreja apenas um sinal, aliás passível de ambiguidade.
18. Ora este não é o Reino de Deus, que conhecemos pela Revelação: ele não pode ser separado de Cristo nem da Igreja.
Como já se disse, Cristo não só anunciou o Reino, mas, n'Ele, o próprio Reino se tornou presente e plenamente se realizou. E não apenas através das Suas palavras e obras: « o Reino manifesta-se principalmente na própria pessoa de Cristo, Filho de Deus e Filho do Homem, que veio 'para servir e dar a Sua vida em resgate por muitos' (Mc 10, 45) ». [22] O Reino de Deus não é um conceito, uma doutrina, um programa sujeito a livre elaboração, mas é, acima de tudo, uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazaré, imagem do Deus invisível. [23] Se separarmos o Reino, de Jesus, ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregado, acabando por se distorcer quer o sentido do Reino, que corre o risco de se transformar numa meta puramente humana ou ideológica, quer a identidade de Cristo, que deixa de aparecer como o Senhor, a Quem tudo se deve submeter (cf. 1 Cor 15, 27).
De igual modo, não podemos separar o Reino, da Igreja. Com certeza que esta não é fim em si própria, uma vez que se ordena ao Reino de Deus, do qual é princípio, sinal e instrumento. Mesmo sendo distinta de Cristo e do Reino, a Igreja todavia está unida indissoluvelmente a ambos. Cristo dotou a Igreja, Seu Corpo, da plenitude de bens e de meios da salvação; o Espírito Santo reside nela, dá-lhe a vida com os Seus dons e carismas, santifica, guia e renova-a continuamente. [24] Nasce daí uma relação única e singular que, mesmo sem excluir a obra de Cristo e do Espírito fora dos confins visíveis da Igreja, confere a esta um papel específico e necessário. Disto provém a ligação especial da Igreja com o Reino de Deus e de Cristo, que ela t em « a missão de anunciar e estabelecer em todos os povos ». [25]
19. Nesta visão de conjunto, é que se compreende a realidade do Reino. É verdade que ele exige a promoção dos bens humanos e dos valores, que podem mesmo ser chamados « evangélicos », porque intimamente ligados à Boa Nova. Mas essa promoção, que a Igreja também toma a peito realizar, não deve ser separada nem contraposta às outras suas tarefas fundamentais, como são o anúncio de Cristo e Seu Evangelho, a fundação e desenvolvimento de comunidades que actuem entre os homens a imagem viva do Reino. Isto não nos deve fazer recear que se possa cair numa forma de eclesiocentrismo. Paulo VI, que afirmou existir « uma profunda ligação entre Cristo, a Igreja e a evangelização », [26] disse também que a Igreja « não é fim em si própria, pelo contrário, deseja intensamente ser toda de Cristo, em Cristo e para Cristo, e toda dos homens, entre os homens e para os homens ». [27]
A Igreja ao serviço do Reino
20. A Igreja está efectiva e concretamente ao serviço do Reino. Em primeiro lugar, serve-o com o anúncio que chame à conversão: este é o primeiro e fundamental serviço à vinda do Reino para cada pessoa e para a sociedade humana. A salvação escatológica começa já agora, na novidade de vida em Cristo: « a todos os que O receberam, aos que crêem n'Ele, deu o poder de se tornarem filhos de Deus » (Jo 1, 12).
A Igreja serve ainda o Reino, fundando comunidades, constituindo Igrejas particulares, levando-as ao amadurecimento da fé e da caridade, na abertura aos outros, no serviço à pessoa e à sociedade, na compreensão e estima das instituições humanas.
A Igreja, além disso, serve o Reino, difundindo pelo mundo os «valores evangélicos», que são a expressão do Reino, e ajudam os homens a acolher o desígnio de Deus. É verdade que a realidade incipiente do Reino se pode encontrar também fora dos confins da Igreja, em toda a humanidade na medida em que ela viva os «valores evangélicos » e se abra à acção do Espírito que sopra onde e como quer (cf. Jo 3, 8); mas é preciso acrescentar, logo a seguir, que esta dimensão temporal do Reino está incompleta, enquanto não se ordenar ao Reino de Cristo, presente na Igreja, em constante tensão para a plenitude escatológica. [28]
As múltiplas perspectivas do Reino de Deus [29] não enfraquecem os fundamentos e as finalidades missionárias; pelo contrário, fortificam e expandem-nas. A Igreja é sacramento de salvação para toda a humanidade; a sua acção não se limita àqueles que aceitam a sua mensagem. Ela é força actuante no caminho da humanidade rumo ao Reino escatológico, é sinal e promotora dos valores evangélicos entre os homens. [30] Neste itinerário de conversão ao projecto de Deus, a Igreja contribui com o seu testemunho e actividade, expressa no diálogo, na promoção humana, no compromisso pela paz e pela justiça, na educação, no cuidado dos doentes, na assistência aos pobres e mais pequenos, mantendo sempre firme a prioridade das realidades transcendentes e espirituais, premissas da salvação escatológica.
A Igreja serve o Reino também com a sua intercessão, uma vez que aquele, por sua natureza, é dom e obra de Deus, como lembram as parábolas evangélicas e a própria oração que Jesus nos ensinou. Devemos suplicá-lo, para que seja acolhido e cresça em nós; mas devemos simultaneamente cooperar a fim de que seja aceite e se consolide entre os homens, até Cristo « entregar o Reino a Deus Pai », altura essa em que « Deus será tudo em todos » (1 Cor 15, 24.28).
CAPÍTULO III
O ESPÍRITO SANTO PROTAGONISTA DA MISSÃO
21. « No ápice da missão messiânica de Jesus, o Espírito Santo aparece-nos, no mistério pascal, em toda a Sua subjectividade divina, como Aquele que deve continuar agora a obra salvífica, radicada no sacrifício da cruz. Esta obra, sem dúvida, foi confiada aos homens: aos Apóstolos e à Igreja. No entanto, nestes homens e por meio deles, o Espírito Santo permanece o sujeito protagonista transcendente da realização dessa obra, no espírito do homem e na história do mundo ». [31]
Verdadeiramente o Espírito Santo é o protagonista de toda a missão eclesial: a Sua obra brilha esplendorosamente na missão ad gentes, como se vê na Igreja primitiva pela conversão de Cornélio (cf. Act 10), pelas decisões acerca dos problemas surgidos (cf.Act 15), e pela escolha dos territórios e povos (cf. Act 16, 6 s). O Espírito Santo age através dos Apóstolos, mas, ao mesmo tempo, opera nos ouvintes: « pela Sua acção a Boa Nova ganha corpo nas consciências e nos corações humanos, expandindo-se na história. Em tudo isto, é o Espírito Santo que dá a vida ». [32]
O envio «até aos confins da terra » (Act 1, 8)
1. A MISSÃO DE CRISTO REDENTOR, confiada à Igreja, está ainda bem longe do seu pleno cumprimento. No termo do segundo milénio, após a Sua vinda, uma visão de conjunto da humanidade mostra que tal missão está ainda no começo, e que devemos empenhar-nos com todas as forças no seu serviço. É o Espírito que impele a anunciar as grandes obras de Deus! « Porque se anuncio o Evangelho, não tenho de que me gloriar, pois que me foi imposta esta obrigação: ai de mim se não evangelizar! » (1 Cor 9, 16).
Em nome de toda a Igreja, sinto o dever imperioso de repetir este grito de S. Paulo. Desde o início do meu pontificado, decidi caminhar até aos confins da terra para manifestar esta solicitude missionária, e este contacto directo com os povos, que ignoram Cristo, convenceu-me ainda mais da urgência de tal actividade a que dedico a presente Encíclica.
O Concílio Vaticano II pretendeu renovar a vida e a actividade da Igreja, de acordo com as necessidades do mundo contemporâneo: assim sublinhou o seu carácter missionário, fundamentando-o dinamicamente na própria missão trinitária. O impulso missionário pertence, pois, à natureza íntima da vida cristã, e inspira também o ecumenismo: « que todos sejam um (...) para que o mundo creia que Tu Me enviaste» (Jo 17,21).
2. Já são muitos os frutos missionários do Concílio: multiplicaram-se as Igrejas locais, dotadas do seu bispo, clero e agentes apostólicos próprios; verifica-se uma inserção mais profunda das Comunidades cristãs na vida dos povos; a comunhão entre as Igrejas contribui para um vivo intercambio de bens e dons espirituais; o empenhamento dos leigos no serviço da evangelização está a mudar a vida eclesial; as Igrejas particulares abrem-se ao encontro, ao diálogo e à colaboração com os membros de outras Igrejas cristãs e outras religiões. Sobretudo está-se a afirmar uma nova consciência, isto é, a de que a missão compete a todos os cristãos, a todas as dioceses e paróquias, instituições e associações eclesiais.
No entanto, nesta « nova primavera » do cristianismo não podemos ocultar uma tendência negativa, que, aliás, este Documento quer ajudar a superar: a missão específica ad gentes parece estar numa fase de afrouxamento, contra todas as indicações do Concílio e do Magistério posterior. Dificuldades internas e externas enfraqueceram o dinamismo missionário da Igreja ao serviço dos não-cristãos: isto é um facto que deve preocupar todos os que crêem em Cristo. Na História da Igreja, com efeito, o impulso missionário sempre foi um sinal de vitalidade, tal como a sua diminuição constitui um sinal de crise de fé.[1]
A distancia de vinte e cinco anos da conclusão do Concílio e da publicação do Decreto sobre a actividade missionária Ad gentes, a quinze anos da Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi de Paulo VI, de veneranda memória, desejo convidar a Igreja a umrenovado empenhamento missionário, dando, neste assunto, continuação ao Magistério dos meus predecessores. [2] O presente Documento tem uma finalidade interna: a renovação da fé e da vida cristã. De facto, a missão renova a Igreja, revigora a sua fé e identidade, dá-lhe novo entusiasmo e novas motivações. É dando a fé que ela se fortalece! A nova evangelização dos povos cristãos também encontrará inspiração e apoio, no empenho pela missão universal.
Mas o que me anima mais a proclamar a urgência da evangelização missionária é que ela constitui o primeiro serviço que a Igreja pode prestar ao homem e à humanidade inteira, no mundo de hoje, que, apesar de conhecer realizações maravilhosas, parece ter perdido o sentido último das coisas e da sua própria existência. « Cristo Redentor — como deixei escrito na primeira Encíclica — revela plenamente o homem a si próprio. O homem que a si mesmo se quiser compreender profundamente (.. ) deve aproximar-se de Cristo (...) A Redenção, operada na cruz, restituiu definitivamente ao homem a dignidade e o sentido da sua existência no mundo ». [3]
Não faltam certamente outros motivos e finalidades: corresponder a inúmeros pedidos de um documento deste género; dissipar dúvidas e ambiguidades sobre a missão ad gentes, confirmando no seu compromisso os beneméritos homens e mulheres que se dedicam à actividade missionária e todos quantos os ajudam; promover as vocações missionárias; estimular os teólogos a aprofundar e expor sistematicamente os vários aspectos da missão; relançar a missão, em sentido específico, comprometendo as Igrejas particulares, especialmente as de recente formação, a mandarem e a receberem missionários; garantir aos não cristãos, e particularmente às Autoridades dos Países aos quais se dirige a actividade missionária, que esta só tem uma finalidade, ou seja, servir o homem, revelando-lhe o amor de Deus manifestado em Cristo Jesus.
3. Povos todos, abri as portas a Cristo! O Seu Evangelho não tira nada à liberdade do homem, ao devido respeito pelas culturas, a tudo quanto de bom possui cada religião. Acolhendo Cristo, abris-vos à Palavra definitiva de Deus, Àquele no qual Deus se deu a conhecer plenamente e nos indicou o caminho para chegar a Ele.
O número daqueles que ignoram Cristo, e não fazem parte da Igreja está em contínuo aumento; mais ainda: quase duplicou, desde o final do Concílio. A favor desta imensa humanidade, amada pelo Pai a ponto de lhe enviar o Seu Filho, é evidente a urgência da missão.
Por outro lado, a época que vivemos oferece, neste campo, novas oportunidades à Igreja: a queda de ideologias e sistemas políticos opressivos; o aparecimento de um mundo mais unido, graças ao incremento das comunicações; a afirmação, cada vez mais frequente entre os povos, daqueles valores evangélicos que Jesus encarnou na sua vida: paz, justiça, fraternidade, dedicação aos mais pequenos; um tipo de desenvolvimento económico e técnico sem alma, que, em contrapartida, está a criar necessidade da verdade sobre Deus , o homem e o significa do da vida.
Deus abre, à Igreja, os horizontes de uma humanidade mais preparada para a sementeira evangélica. Sinto chegado o momento de empenhar todas as forças eclesiais na nova evangelização e na missão ad gentes. Nenhum crente, nenhuma instituição da Igreja se pode esquivar deste dever supremo: anunciar Cristo a todos os povos.
CAPÍTULO I
JESUS CRISTO ÚNICO SALVADOR
4. « A tarefa fundamental da Igreja de todos os tempos e, particularmente, do nosso — como lembrei, na minha primeira Encíclica programática — é a de dirigir o olhar do homem e orientar a consciência e experiência da humanidade inteira, para o mistério de Cristo ». [4]
A missão universal da Igreja nasce da fé em Jesus Cristo, como se declara no Credo: « Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigénito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos (...) E por nós homens, e para nossa salvação, desceu dos céus. E encarnou pelo Espírito Santo no seio da Virgem Maria, e Se fez homem ». [5] No acontecimento da Redenção está a salvação de todos, « porque todos e cada um foram compreendidos no mistério da Redenção, e a todos e cada um se uniu Cristo para sempre, através deste mistério »: [6] somente na fé, se fundamenta e compreende a missão.
No entanto, devido às mudanças dos tempos modernos e à difusão de novas ideias teológicas, alguns interrogam-se: ainda é actual a missão entre os não cristãos? Não estará por acaso substituída pelo diálogo interreligioso? Não se deverá restringir ao empenho pela promoção humana? O respeito pela consciência e pela liberdade não exclui qualquer proposta de conversão? Não é possível salvar-se em qualquer religião? Para quê, pois, a missão?
« Ninguém vai ao Pai, senão por Mim » (Jo 14, 6)
5. Remontando às origens da Igreja, aparece clara a afirmação de que Cristo é o único salvador de todos, o único capaz de revelar e de conduzir a Deus. As autoridades religiosas judaicas, que interrogam os Apóstolos sobre a cura do aleijado, realizada por Pedro, este responde: « É em nome de Jesus Nazareno, que vós crucificastes e Deus ressuscitou dos mortos, é por Ele que este homem se apresenta curado diante de vós (... ) E não há salvação em nenhum outro, pois não há debaixo do céu qualquer outro nome dado aos homens que nos possa salvar » (Act 4, 10.12). Esta afirmação, dirigida ao Sinédrio, tem um valor universal, já que, para todos — judeus e gentios —, a salvação só pode vir de Jesus Cristo.
A universalidade desta salvação em Cristo é afirmada em todo o Novo Testamento. S. Paulo reconhece, em Cristo ressuscitado, o Senhor: « Porque, ainda que haja alguns que são chamados deuses, quer no céu quer na terra, existindo assim muitos deuses e muitos senhores, para nós há apenas um único Deus, o Pai de Quem tudo procede e para Quem nós existimos; e um único Senhor, Jesus Cristo, por meio do Qual todas as coisas existem, e igualmente nós existimos também » (1 Cor 8, 5-6). O único Deus e o único Senhor são afirmados em contraste com a multidão de « deuses » e de « senhores » que o povo admitia. Paulo reage contra o politeísmo do ambiente religioso do seu tempo, pondo em relevo a característica da fé cristã: crença num só Deus e num só Senhor, por Aquele enviado.
No Evangelho de S. João, esta universalidade salvífica de Cristo compreende os aspectos da Sua missão de graça, de verdade e de revelação: « o Verbo é a Luz verdadeira que a todo o homem ilumina » (Jo 1, 9). E ainda: « ninguém jamais viu Deus: o Filho único, que está no seio do Pai, é que O deu a conhecer » (Jo 1, 18; cf. Mt 11, 27). A revelação de Deus tornou-se definitiva e completa, na obra do Seu Filho Unigénito: « Tendo Deus falado outrora aos nossos pais, muitas vezes e de muitas maneiras, pelos profetas, agora falou-nos, nestes últimos tempos, pelo Filho, a Quem constituiu herdeiro de tudo, e por Quem igualmente criou o mundo » (Heb 1, 1-2; cf. Jo 14, 6). Nesta Palavra definitiva da Sua revelação, Deus deu-se a conhecer do modo mais pleno: Ele disse à humanidade Quem é. E esta auto-revelação definitiva de Deus é o motivo fundamental pelo qual a Igreja é, por sua natureza, missionária. Não pode deixar de proclamar o Evangelho, ou seja, a plenitude da verdade que Deus nos deu a conhecer de Si mesmo.
Cristo é o único mediador entre Deus e os homens: « há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo Homem, que se deu em resgate por todos. Tal é o testemunho que foi dado no tempo devido, e do qual eu fui constituído pregador, apóstolo e mestre dos gentios na fé e na verdade. Digo a verdade, não minto » (1 Tim 2, 5-7; cf. Heb 4, 14-16). Os homens, portanto, só poderão entrar em comunhão com Deus através de Cristo, e sob a acção do Espírito. Esta Sua mediação única e universal, longe de ser obstáculo no caminho para Deus, é a via estabelecida pelo próprio Deus, e disso, Cristo tem plena consciência. Se não se excluem mediações participadas de diverso tipo e ordem, todavia elas recebem significado e valorunicamente da de Cristo, e não podem ser entendidas como paralelas ou complementares desta.
6. É contrário à fé cristã introduzir qualquer separação entre o Verbo divino e Jesus Cristo. S. João afirma claramente que o Verbo, que « no princípio estava com Deus », é o mesmo que « se fez carne » (Jo 1, 2. 14). Jesus é o Verbo encarnado, pessoa una e indivisa: não se pode separar Jesus, de Cristo, nem falar de um «Jesus da história » que seria diferente do « Cristo da fé ». A Igreja conhece e confessa Jesus como « Cristo, o Filho de Deus vivo » (Mt 16, 16): Cristo não é diferente de Jesus de Nazaré; e este é o Verbo de Deus feito homem, para a salvação de todos. Em Cristo, « habita corporalmente toda a plenitude da divindade » (Col 2, 9) e « da Sua plenitude todos nós recebemos » (Jo 1, 16). O « Filho Unigénito, que está no seio do Pai » (Jo 1, 18), é « o Filho muito amado, no qual temos a redenção e a remissão dos pecados (...) Aprouve a Deus que n'Ele residisse toda a plenitude, e por Ele fossem reconciliadas Consigo todas as coisas, pacificando, pelo sangue da sua cruz, tanto as criaturas da terra como as do céu » (Col 1, 13-14. 19-20). Precisamente esta singularidade única de Cristo é que Lhe confere um significado absoluto e universal, pelo qual, enquanto está na História, é o centro e o fim desta mesma História: [7] « Eu sou o Alfa e o Ómega, o Primeiro e o Ultimo, o Princípio e o Fim » (Ap 22, 13).
Se é lícito e útil, portanto, considerar o mistério de Cristo sob os seus vários aspectos, nunca se deve perder de vista a Sua unidade. À medida que formos descobrindo e valorizando os diversos tipos de dons, e sobretudo as riquezas espirituais, que Deus distribuiu a cada povo, não podemos separá-los de Jesus Cristo, o Qual está no centro da economia salvadora. De facto, como « pela encarnação, o Filho de Deus se uniu de alguma forma a todo o homem », assim « devemos acreditar que o Espírito Santo oferece a todos, de um modo que só Deus conhece, a possibilidade de serem associados ao mistério pascal », [8] o plano divino é « recapitular em Cristo todas as coisas que há no céu e na terra » (Ef 1, 10).
A fé em Cristo é uma proposta à liberdade do homem
7. A urgência da actividade missionária deriva da radical novidade de vida, trazida por Cristo e vivida pelos Seus discípulos. Esta nova vida é dom de Deus, e, ao homem, é-lhe pedido que a acolha e desenvolva, se quiser realizar integralmente a sua vocação, conformando-se a Cristo. Todo o Novo Testamento se apresenta como um hino à vida nova, para aquele que crê em Cristo e vive na Sua Igreja. A salvação em Cristo, testemunhada e anunciada pela Igreja, é auto-comunicação de Deus. « O amor não só cria o bem, mas faz participar também na própria vida de Deus: Pai, Filho e Espírito Santo. Com efeito, aquele que ama quer dar-se a si mesmo ». [9]
Deus oferece ao homem esta novidade de vida. « Poder-se-á rejeitar Cristo e tudo aquilo que Ele introduziu na história do homem? Certamente que sim; o homem é livre: ele pode dizer não, a Deus. O homem pode dizer não, a Cristo. Mas permanece a pergunta fundamental: é lícito fazê-lo? É lícito, em nome de quê? ». [10]
8. No mundo moderno, há tendência para reduzir o homem unicamente à dimensão horizontal. Mas o que acontece ao homem que não se abre ao Absoluto? A resposta está na experiência de cada homem, mas está também inscrita, na história da humanidade, com o sangue derramado em nome de ideologias e regimes políticos que quiseram construir uma « humanidade nova » sem Deus. [11]
De resto, a quantos se mostram preocupados em salvar a liberdade de consciência, o Concílio Vaticano II responde: « a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa (...) Todos os homens devem viver imunes de coacção, em matéria religiosa, quer da parte de pessoas particulares, quer de grupos sociais ou qualquer poder humano, de tal forma que ninguém seja obrigado a agir contra a sua consciência, nem impedido de actuar de acordo com ela, privada ou publicamente, só ou associado ». [12]
O anúncio e o testemunho de Cristo, quando feitos no respeito das consciências, não violam a liberdade. A fé exige a livre adesão do homem, mas tem de ser proposta, já que « as multidões têm o direito de conhecer as riquezas do mistério de Cristo, nas quais toda a humanidade — assim o acreditamos nós — pode encontrar, numa plenitude inimaginável, tudo aquilo que procura, às apalpadelas, a respeito de Deus, do homem, do seu destino, da vida e da morte, da verdade (... ) É por isso que a Igreja conserva bem vivo o seu espírito missionário, desejando até que ele se intensifique, neste momento histórico que nos foi dado viver ». [13] No entanto, é necessário acrescentar, citando ainda o Concílio, que « todos os homens, pela sua própria dignidade, já que são pessoas, isto é, seres dotados de razão e vontade livre, e consequentemente de responsabilidade pessoal, são impelidos pela sua natureza, e moralmente obrigados a procurar a verdade, e antes de tudo a que se refere à religião. Têm também obrigação de aderir à verdade conhecida, e ordenar toda a sua vida segundo as exigências da verdade ». [14]
A Igreja sinal e instrumento de salvação
9. A primeira beneficiária da salvação é a Igreja: Cristo adquiriu-a com o Seu sangue (cf. Act 20, 28) e tornou-a Sua cooperadora na obra da salvação universal. Com efeito, Cristo vive nela, é o seu Esposo, realiza o seu crescimento, e cumpre a Sua missão através dela.
O Concílio deu grande realce ao papel da Igreja, em favor da salvação da humanidade. Enquanto reconhece que Deus ama todos os homens e lhes dá a possibilidade de se salvarem (cf. 1 Tim 2, 4), [15] a Igreja professa que Deus constituiu Cristo como único mediador e que ela própria foi posta como instrumento universal de salvação. [16] « Todos os homens, pois, são chamados a esta católica unidade do Povo de Deus (...) à qual, de diversos modos, pertencem ou estão ordenados quer os fiéis católicos, quer os outros crentes em Cristo, quer universalmente todos os homens, chamados à salvação pela graça de Deus ». [17] É necessário manter unidas, estas duas verdades: a real possibilidade de salvação em Cristo para todos os homens, e a necessidade da Igreja para essa salvação. Ambas facilitam a compreensão do único mistério salvífico, permitindo experimentar a misericórdia de Deus e a nossa responsabilidade. A salvação, que é sempre um dom do Espírito, exige a colaboração do homem, para se salvar tanto a si próprio como aos outros. Assim o quis Deus, e por isso estabeleceu e comprometeu a Igreja no plano da salvação. « Este povo messiânico — diz o Concílio — estabelecido por Cristo como uma comunhão de vida, amor e verdade, serve também, nas mãos d'Ele, de instrumento da redenção universal, sendo enviado a todo o mundo, como luz desse mundo e sal da terra ». [18]
A salvação é oferecida a todos os homens
10. A universalidade da salvação em Cristo não significa que ela se destina apenas àqueles que, de maneira explícita, crêem em Cristo e entraram na Igreja. Se é destinada a todos, a salvação deve ser posta concretamente à disposição de todos. É evidente, porém, que, hoje como no passado, muitos homens não têm a possibilidade de conhecer ou aceitar a revelação do Evangelho, e de entrar na Igreja. Vivem em condições socioculturais que o não permitem, e frequentemente foram educados noutras tradições religiosas. Para eles, a salvação de Cristo torna-se acessível em virtude de uma graça que, embora dotada de uma misteriosa relação com a Igreja, todavia não os introduz formalmente nela, mas ilumina convenientemente a sua situação interior e ambiental. Esta graça provém de Cristo, é fruto do Seu sacrifício e é comunicada pelo Espírito Santo: ela permite a cada um alcançar a salvação, com a sua livre colaboração.
Por isso o Concílio, após afirmar a dimensão central do Mistério Pascal, diz: « isto não vale apenas para aqueles que crêem em Cristo, mas para todos os homens de boa vontade, no coração dos quais opera invisivelmente a graça. Na verdade, se Cristo morreu por todos e a vocação última do homem é realmente uma só, isto é, a divina, nós devemos acreditar que o Espírito Santo oferece a todos, de um modo que só Deus conhece, a possibilidade de serem associados ao Mistério Pascal ». [19]
« Não podemos calar-nos » (Act 4, 20)
11. Que dizer então das objecções, atrás referidas, relativamente à missão ad gentes? Respeitando todas as crenças e todas as sensibilidades, devemos afirmar antes de mais, com simplicidade, a nossa fé em Cristo, único Salvador do homem — fé que recebemos como um dom do Alto, sem mérito algum da nossa parte. Dizemos com S. Paulo: « eu não me envergonho do Evangelho, o qual é poder de Deus para salvação de todo o crente » (Rm 1, 16). Os mártires cristãos de todos os tempos — também do nosso — deram e continuam a dar a vida para testemunhar aos homens esta fé, convencidos de que cada homem necessita de Jesus Cristo, o Qual, destruindo o pecado e a morte, reconciliou os homens com Deus.
Cristo proclamou-se Filho de Deus, intimamente unido ao Pai e, como tal, foi reconhecido pelos discípulos, confirmando as suas palavras com milagres e sobretudo com a ressurreição. A Igreja oferece aos homens o Evangelho, documento profético, capaz de corresponder às exigências e aspirações do coração humano: é e será sempre a « Boa Nova ». A Igreja não pode deixar de proclamar que Jesus veio revelar a face de Deus, e merecer, pela cruz e ressurreição, a salvação para todos os homens.
À pergunta porquê a missão?, respondemos, com a fé e a experiência da Igreja, que abrir-se ao amor de Cristo é a verdadeira libertação. N'Ele, e só n'Ele, somos libertos de toda a alienação e extravio, da escravidão ao poder do pecado e da morte. Cristo é verdadeiramente « a nossa paz » (Ef 2,14), e « o amor de Cristo nos impele » (2 Cor 5, 14), dando sentido e alegria à nossa vida.A missão é um problema de fé, é a medida exacta da nossa fé em Cristo e no Seu amor por nós.
A tentação hoje é reduzir o cristianismo a uma sabedoria meramente humana, como se fosse a ciência do bom viver. Num mundo fortemente secularizado, surgiu uma « gradual secularização da salvação », onde se procura lutar, sem dúvida, pelo homem, mas por um homem dividido a meio, reduzido unicamente à dimensão horizontal. Ora nós sabemos que Jesus veio trazer a salvação integral, que abrange o homem todo e todos os homens, abrindo-lhes os horizontes admiráveis da filiação divina.
Porquê a missão? Porque a nós, como a S. Paulo, « nos foi dada esta graça de anunciar aos gentios a insondável riqueza de Cristo » (Ef 3, 8). A novidade de vida n'Ele é « Boa Nova » para o homem de todos os tempos: a ela todos são chamados e destinados. Todos, de facto, a buscam, mesmo se às vezes confusamente, e têm o direito de conhecer o valor de tal dom e aproximar-se dele. A Igreja, e nela cada cristão, não pode esconder nem guardar para si esta novidade e riqueza, recebida da bondade divina para ser comunicada a todos os homens.
Eis por que a missão, para além do mandato formal do Senhor, deriva ainda da profunda exigência da vida de Deus em nós. Aqueles que estão incorporados na Igreja Católica devem-se sentir privilegiados, e, por isso mesmo, mais comprometidos atestemunhar a fé e a vida cristã como serviço aos irmãos e resposta devida a Deus, lembrados de que « a grandeza da sua condição não se deve atribuir aos próprios méritos, mas a uma graça especial de Cristo; se não correspondem a essa graça por pensamentos, palavras e obras, em vez de se salvarem, incorrem num julgamento ainda mais severo ». [20]
CAPÍTULO II
O REINO DE DEUS
12. « Deus, rico em misericórdia, é Aquele que Jesus Cristo nos revelou como Pai. Foi o Seu próprio Filho Quem, em Si mesmo, no-l'O manifestou e deu a conhecer », [21] Isto escrevi-o eu, no início da Encíclica Dives in misericordia, mostrando como Cristo é a revelação e a encarnação da misericórdia do Pai. A salvação consiste em crer e acolher o mistério do Pai e do Seu amor, que se manifesta e oferece em Jesus, por meio do Espírito. Assim se cumpre o Reino de Deus, preparado já no Antigo Testamento, realizado por Cristo e em Cristo, anunciado a todos os povos pela Igreja, que actua e reza para que ele se realize de modo perfeito e definitivo.
Na verdade, o Antigo Testamento atesta que Deus escolheu para Si e formou um povo, para revelar e cumprir o Seu plano de amor. Mas, ao mesmo tempo, Deus é criador e Pai de todos os homens, atende às necessidades de cada um, estende a Sua bênção a todos (cf. Gn 12, 3) e com todos selou uma aliança (cf. Gn 9, 1-17). Israel faz a experiência de um Deus pessoal e salvador (cf. Dt 4, 37; 7, 6-8; Is 43, 1-7), do Qual se torna testemunha e porta-voz, no meio das nações. Ao longo da sua história, Israel toma consciência de que a sua eleição tem um significado universal (cf por ex.: Is 2, 2-5; 25, 6-8; 60, 1-6; Jer 3, 17; 16, 19).
Cristo torna presente o Reino
13. Jesus de Nazaré levou o plano de Deus ao seu pleno cumprimento. Depois de ter recebido o Espírito Santo no baptismo, Ele manifesta a sua vocação messiânica nestes moldes: percorre a Galileia, « pregando a Boa Nova de Deus: 'Completou-se o tempo, o Reino de Deus está perto! Arrependei-vos, e acreditai na Boa Nova' » (Mc 1, 14-15; cf. Mt 4, 17; Lc 4, 43). A proclamação e a instauração do Reino de Deus são o objectivo da Sua missão: « pois foi para isso que fui enviado » (Lc 4, 43). Mais ainda: o próprio Jesus é a « Boa Nova », como afirma logo no início da missão, na sinagoga da Sua terra natal, aplicando a Si próprio as palavras de Isaías, sobre o Ungido, enviado pelo Espírito do Senhor (cf. Lc 4, 14-21). Sendo Ele a « Boa Nova », então em Cristo há identidade entre mensagem e mensageiro, entre o dizer, o fazer e o ser. A força e o segredo da eficácia da Sua acção está na total identificação com a mensagem que anuncia: proclama a « Boa Nova » não só por aquilo que diz ou faz, mas também pelo que é.
O ministério de Jesus é descrito no contexto das viagens na Sua terra. O horizonte da missão antes da Páscoa concentra-se em Israel; no entanto, Jesus oferece um novo elemento de importância capital. A realidade escatológica não fica adiada para um remoto fim do mundo, mas está próxima e começa já a cumprir-se. O Reino de Deus aproxima-se (cf. Mc 1, 15), roga-se que venha (Mt 6, 10), a fé já o descobre operante nos sinais, isto é, nos milagres (cf. Mt 11, 4-5), nos exorcismos (cf. Mt 12, 25-28), na escolha dos Doze (cf. Mc 3, 13-19), no anúncio de Boa Nova aos pobres (cf. Lc 4, 18). Nos encontros de Jesus com os pagãos, fica claro que o acesso ao Reino se faz pela fé e conversão (cf. Mc 1, 15), e não por mera proveniência étnica.
O Reino, inaugurado por Jesus, é o Reino de Deus: o próprio Jesus revela Quem é este Deus, para o Qual usa a expressão familiar « Abba », Pai (Mc 14, 36). Deus, revelado especialmente nas parábolas (cf. Lc 15, 3-32; Mt 20, 1-16), é sensível às necessidades e aos sofrimentos do homem: um Pai cheio de amor e compaixão, que perdoa e dá gratuitamente os benefícios que Lhe pedem.
S. João diz-nos que « Deus é amor » (1 Jo 4, 8.16). Todo o homem, por isso, é convidado a « converter-se » e a « crer » no amor misericordioso de Deus por ele: o Reino crescerá na medida em que cada homem aprender a dirigir-se a Deus, na intimidade da oração, como a um Pai (cf. Lc 11, 2; Mt 23, 9), e se esforçar por cumprir a Sua vontade (cf. Mt 7, 21).
Características e exigências do Reino
14. Jesus revela progressivamente as características e as exigências do Reino, através das suas palavras, das suas obras e da sua pessoa.
O Reino de Deus destina-se a todos os homens, pois todos foram chamados a pertencer-lhe. Para sublinhar este aspecto, Jesus aproximou-se sobretudo daqueles que eram marginalizados pela sociedade, dando-lhes preferência, ao anunciar a Boa Nova. No início do Seu ministério, proclama: fui enviado a anunciar a Boa Nova aos pobres (cf. Lc 4, 18). As vítimas da rejeição e do desprezo, declara: « bem-aventurados vós, os pobres » (Lc 6, 20), fazendo-lhes, inclusive, sentir e viver já uma experiência de libertação, estando com eles, partilhando a mesma mesa (cf. Lc 5, 30; 15, 2), tratando-os como iguais e amigos (cf. Lc 7, 34), procurando que se sentissem amados por Deus, e revelando deste modo imensa ternura pelos necessitados e pecadores (cf. Lc15, 1-32).
A libertação e a salvação, oferecidas pelo Reino de Deus, atingem a pessoa humana tanto nas suas dimensões físicas como espirituais. Dois gestos caracterizam a missão de Jesus: curar e perdoar. As múltiplas curas provam a Sua grande compaixão face às misérias humanas; mas significam também que, no Reino de Deus, não haverá doenças nem sofrimentos, e que a Sua missão, desde o início, visa libertar as pessoas daqueles. Na perspectiva de Jesus, as curas são também sinal da salvação espiritual, isto é, da libertação do pecado Realizando gestos de cura, Jesus convida à fé, à conversão, ao desejo do perdão (cf. Lc 5, 24) Recebida a fé, a cura impele a ir mais longe: introduz na salvação (cf. Lc 18, 42-43). Os gestos de libertação da possessão do demónio, mal supremo e símbolo do pecado e da rebelião contra Deus, são sinais de que o « Reino de Deus chegou até vós » (Mt 12, 28).
15. O reino pretende transformar as relações entre os homens, e realiza-se progressivamente à medida que estes aprendem a amar, perdoar, a servir-se mutuamente. Jesus retoma toda a Lei, centrando-a no mandamento do amor (cf. Mt 22, 34-40; Lc 10, 25-28). Antes de deixar os seus, dá-lhes um « mandamento novo »: « amai-vos uns aos outros como Eu vos amei » (Jo 13, 34; cf. 15, 12). O amor com que Jesus amou o mundo tem a sua expressão suprema, no dom da Sua vida pelos homens (cf. Jo 15, 13), que manifesta o amor que o Pai tem pelo mundo (cf. Jo 3, 16). Por isso a natureza do Reino é a comunhão de todos os seres humanos entre si e com Deus.
O Reino diz respeito a todos: às pessoas, à sociedade, ao mundo inteiro. Trabalhar pelo Reino significa reconhecer e favorecer o dinamismo divino, que está presente na história humana e a transforma. Construir o Reino quer dizer trabalhar para a libertação do mal, sob todas as suas formas. Em resumo, o Reino de Deus é a manifestação e a actuação do Seu desígnio de salvação, em toda a sua plenitude.
Em Cristo ressuscitado, o Reino cumpre-se e é proclamado
16. Ao ressuscitar Jesus dos mortos, Deus venceu a morte, e n'Ele inaugurou definitivamente o Seu Reino. Durante a vida terrena, Jesus é o profeta do Reino e, depois da Sua paixão, ressurreição e ascensão aos céus, participa do poder de Deus, e do Seu domínio sobre o mundo (cf Mt 28, 18; Act 2, 36; Ef 1, 18-21). A ressurreição confere à mensagem de Cristo, e a toda a Sua acção e missão, um alcance universal. Os discípulos constatam que o Reino já está presente na pessoa de Jesus, e pouco a pouco vai-se instaurando no homem e no mundo, por uma misteriosa ligação com a Sua pessoa. Assim depois da ressurreição, eles pregam o Reino, anunciando a morte e a ressurreição de Jesus; Filipe, na Samaria, « anunciava a Boa Nova do Reino de Deus e do nome de Jesus Cristo » (Act 8, 12). Paulo, em Roma, « anunciava o Reino de Deus e ensinava o que diz respeito ao Senhor Jesus Cristo » (Act 28, 31). Também os primeiros cristãos anunciam « o Reino de Cristo e de Deus » (Ef 5, 5; cf. Ap 11, 15; 12, 10), ou então « o Reino eterno de Nosso Senhor e Salvador, Jesus Cristo » (2 Ped 1, 11). Sobre o anúncio de Jesus Cristo, com o Qual o Reino se identifica, se concentra a pregação da Igreja primitiva. Como outrora, é preciso unir hoje o anúncio do Reino de Deus (o conteúdo do « kerigma » de Jesus) e a proclamação da vinda de Jesus Cristo (o « kerigma » dos apóstolos). Os dois anúncios completam-se e iluminam-se mutuamente.
O Reino em relação a Cristo e à Igreja
17. Hoje fala-se muito do Reino, mas nem sempre em consonância com o sentir da Igreja. De facto, existem concepções de salvação e missão que podem ser designadas « antropocêntricas », no sentido redutivo da palavra, por se concentrarem nas necessidades terrenas do homem. Nesta perspectiva, o Reino passa a ser uma realidade totalmente humanizada e secularizada, onde o que conta são os programas e as lutas para a libertação socio-económica, política e cultural, mas sempre num horizonte fechado ao transcendente. Sem negar que, a este nível, também existem valores a promover, todavia estas concepções permanecem nos limites de um reino do homem, truncado nas suas mais autênticas e profundas dimensões, espelhando-se facilmente numa das ideologias de progresso puramente terreno. O Reino de Deus, pelo contrário, « não é deste mundo (...) não é daqui debaixo » (Jo 18, 36).
Existem também concepções que propositadamente colocam o acento no Reino, autodenominando-se de « reino-cêntricas », pretendendo com isso fazer ressaltar a imagem de uma Igreja que não pensa em si, mas dedica-se totalmente a testemunhar e servir o Reino. E uma « Igreja para os outros » — dizem — como Cristo é o homem para os outros. A tarefa da Igreja é orientada num duplo sentido: por um lado promover os denominados « valores do Reino », como a paz, a justiça, a liberdade, a fraternidade, por outro, favorecer o diálogo entre os povos, as culturas, as religiões, para que, num mútuo enriquecimento, ajudem o mundo a renovar-se e a caminhar cada vez mais na direcção do Reino.
Ao lado de aspectos positivos, essas concepções revelam frequentemente outros negativos. Antes de mais, silenciam o que se refere a Cristo: o Reino, de que falam, baseia-se num « teocentrismo », porque — como dizem — Cristo não pode ser entendido por quem não possui a fé n'Ele, enquanto que povos, culturas e religiões se podem encontrar na mesma e única realidade divina, qualquer que seja o seu nome. Pela mesma razão, realçam o mistério da criação, que se reflecte na variedade de culturas e crenças, mas omitem o mistério da redenção. Mais ainda, o Reino, tal como o entendem eles, acaba por marginalizar ou desvalorizar a Igreja, como reacção a um suposto eclesiocentrismo do passado, por considerarem a Igreja apenas um sinal, aliás passível de ambiguidade.
18. Ora este não é o Reino de Deus, que conhecemos pela Revelação: ele não pode ser separado de Cristo nem da Igreja.
Como já se disse, Cristo não só anunciou o Reino, mas, n'Ele, o próprio Reino se tornou presente e plenamente se realizou. E não apenas através das Suas palavras e obras: « o Reino manifesta-se principalmente na própria pessoa de Cristo, Filho de Deus e Filho do Homem, que veio 'para servir e dar a Sua vida em resgate por muitos' (Mc 10, 45) ». [22] O Reino de Deus não é um conceito, uma doutrina, um programa sujeito a livre elaboração, mas é, acima de tudo, uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazaré, imagem do Deus invisível. [23] Se separarmos o Reino, de Jesus, ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregado, acabando por se distorcer quer o sentido do Reino, que corre o risco de se transformar numa meta puramente humana ou ideológica, quer a identidade de Cristo, que deixa de aparecer como o Senhor, a Quem tudo se deve submeter (cf. 1 Cor 15, 27).
De igual modo, não podemos separar o Reino, da Igreja. Com certeza que esta não é fim em si própria, uma vez que se ordena ao Reino de Deus, do qual é princípio, sinal e instrumento. Mesmo sendo distinta de Cristo e do Reino, a Igreja todavia está unida indissoluvelmente a ambos. Cristo dotou a Igreja, Seu Corpo, da plenitude de bens e de meios da salvação; o Espírito Santo reside nela, dá-lhe a vida com os Seus dons e carismas, santifica, guia e renova-a continuamente. [24] Nasce daí uma relação única e singular que, mesmo sem excluir a obra de Cristo e do Espírito fora dos confins visíveis da Igreja, confere a esta um papel específico e necessário. Disto provém a ligação especial da Igreja com o Reino de Deus e de Cristo, que ela t em « a missão de anunciar e estabelecer em todos os povos ». [25]
19. Nesta visão de conjunto, é que se compreende a realidade do Reino. É verdade que ele exige a promoção dos bens humanos e dos valores, que podem mesmo ser chamados « evangélicos », porque intimamente ligados à Boa Nova. Mas essa promoção, que a Igreja também toma a peito realizar, não deve ser separada nem contraposta às outras suas tarefas fundamentais, como são o anúncio de Cristo e Seu Evangelho, a fundação e desenvolvimento de comunidades que actuem entre os homens a imagem viva do Reino. Isto não nos deve fazer recear que se possa cair numa forma de eclesiocentrismo. Paulo VI, que afirmou existir « uma profunda ligação entre Cristo, a Igreja e a evangelização », [26] disse também que a Igreja « não é fim em si própria, pelo contrário, deseja intensamente ser toda de Cristo, em Cristo e para Cristo, e toda dos homens, entre os homens e para os homens ». [27]
A Igreja ao serviço do Reino
20. A Igreja está efectiva e concretamente ao serviço do Reino. Em primeiro lugar, serve-o com o anúncio que chame à conversão: este é o primeiro e fundamental serviço à vinda do Reino para cada pessoa e para a sociedade humana. A salvação escatológica começa já agora, na novidade de vida em Cristo: « a todos os que O receberam, aos que crêem n'Ele, deu o poder de se tornarem filhos de Deus » (Jo 1, 12).
A Igreja serve ainda o Reino, fundando comunidades, constituindo Igrejas particulares, levando-as ao amadurecimento da fé e da caridade, na abertura aos outros, no serviço à pessoa e à sociedade, na compreensão e estima das instituições humanas.
A Igreja, além disso, serve o Reino, difundindo pelo mundo os «valores evangélicos», que são a expressão do Reino, e ajudam os homens a acolher o desígnio de Deus. É verdade que a realidade incipiente do Reino se pode encontrar também fora dos confins da Igreja, em toda a humanidade na medida em que ela viva os «valores evangélicos » e se abra à acção do Espírito que sopra onde e como quer (cf. Jo 3, 8); mas é preciso acrescentar, logo a seguir, que esta dimensão temporal do Reino está incompleta, enquanto não se ordenar ao Reino de Cristo, presente na Igreja, em constante tensão para a plenitude escatológica. [28]
As múltiplas perspectivas do Reino de Deus [29] não enfraquecem os fundamentos e as finalidades missionárias; pelo contrário, fortificam e expandem-nas. A Igreja é sacramento de salvação para toda a humanidade; a sua acção não se limita àqueles que aceitam a sua mensagem. Ela é força actuante no caminho da humanidade rumo ao Reino escatológico, é sinal e promotora dos valores evangélicos entre os homens. [30] Neste itinerário de conversão ao projecto de Deus, a Igreja contribui com o seu testemunho e actividade, expressa no diálogo, na promoção humana, no compromisso pela paz e pela justiça, na educação, no cuidado dos doentes, na assistência aos pobres e mais pequenos, mantendo sempre firme a prioridade das realidades transcendentes e espirituais, premissas da salvação escatológica.
A Igreja serve o Reino também com a sua intercessão, uma vez que aquele, por sua natureza, é dom e obra de Deus, como lembram as parábolas evangélicas e a própria oração que Jesus nos ensinou. Devemos suplicá-lo, para que seja acolhido e cresça em nós; mas devemos simultaneamente cooperar a fim de que seja aceite e se consolide entre os homens, até Cristo « entregar o Reino a Deus Pai », altura essa em que « Deus será tudo em todos » (1 Cor 15, 24.28).
CAPÍTULO III
O ESPÍRITO SANTO PROTAGONISTA DA MISSÃO
21. « No ápice da missão messiânica de Jesus, o Espírito Santo aparece-nos, no mistério pascal, em toda a Sua subjectividade divina, como Aquele que deve continuar agora a obra salvífica, radicada no sacrifício da cruz. Esta obra, sem dúvida, foi confiada aos homens: aos Apóstolos e à Igreja. No entanto, nestes homens e por meio deles, o Espírito Santo permanece o sujeito protagonista transcendente da realização dessa obra, no espírito do homem e na história do mundo ». [31]
Verdadeiramente o Espírito Santo é o protagonista de toda a missão eclesial: a Sua obra brilha esplendorosamente na missão ad gentes, como se vê na Igreja primitiva pela conversão de Cornélio (cf. Act 10), pelas decisões acerca dos problemas surgidos (cf.Act 15), e pela escolha dos territórios e povos (cf. Act 16, 6 s). O Espírito Santo age através dos Apóstolos, mas, ao mesmo tempo, opera nos ouvintes: « pela Sua acção a Boa Nova ganha corpo nas consciências e nos corações humanos, expandindo-se na história. Em tudo isto, é o Espírito Santo que dá a vida ». [32]
O envio «até aos confins da terra » (Act 1, 8)